quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Inimigo da Família


A Igreja, ao celebrar a festa da Sagrada Família de Nazaré, no domingo da Oitava de Natal, quis evidenciar sua solenidade e sua dignidade. A Sagrada Família se apresenta hoje no momento mais íntimo e mais feliz próprio de cada família: aquele em que se alegra e se completa com o nascimento do primeiro filho. Mesmo diante do clima de mistério em que acontecia o nascimento de seu filho, Maria e José viveram os eventos de sua família de maneira semelhante àquela em que vivem dois esposos pobres comuns, mas que se querem bem.

Com esta festa, a Igreja quer, antes de tudo, exaltar e reafirmar a dignidade da família da qual ela mesma recebeu o Salvador; quer, além disso, ajudar-nos a refletir como cristãos sobre esta realidade no seio da qual todos nós vivemos, à qual, aliás, devemos a própria vida. Quero refletir com vocês sobre qual é a vontade de Deus em relação à família, vontade que nenhum referendo pode anular e nenhuma lei humana pode mudar; a qual é, em outras palavras, a ideia de família que tinha em mente Deus quando, no princípio criou o homem e a mulher e os abençoou dizendo “Frutificai – disse Ele – e multiplicai-vos [...] O homem deixa o seu pai e a sua mãe para se unir à sua mulher; e já não são mais que uma só carne” (Gn 1, 28; 2, 24).

A família deveria ser, pelo desígnio de Deus, a continuação da Criação. É possível, hoje, crer e cultivar uma ideia tão alta da família sem passarmos por uns iludidos que vivem fora de seu tempo? É possível ver ainda na família o berço da vida e a fonte do amor, numa época em que esta tão frequentemente é posta no banco dos réus, tão frequentemente teatro de fatos horríveis? Nós, cristãos, devemos responder: Sim, é possível. Aliás, é necessário! É exatamente este testemunho de otimismo que os crentes devem hoje dar aos valores da Criação pela Palavra de Deus. 

É possível que uma moça e um rapaz se conheçam e percebam que se querem bem, um bem especial, diferente de qualquer outro sentimento até então experimentado. É possível que seu amor amadureça até tomar posse de todo o seu ser e os transforme da mesma maneira como o fogo torna incandescente aquilo que aquece.

Santo Agostinho e Santa Mônica.
"Fazei da vossa família uma página do
 Evangelho escrita para nosso tempo!" (São João Paulo II)
Alguém poderá dizer “qual é o preço desta conquista?” Não será, talvez, o heroísmo ou até mesmo a santidade? Em certo sentido, sim, porque cada vida cristã autêntica é um chamado ao heroísmo, à santidade. Mas o real segredo é este: não perder nunca o contato e não se separar nunca da raiz da qual nasceu um dia a família, isto é, o amor. Este, o amor, é a realidade que faz nascer e que somente pode manter em vida a família. O amor parece impossível porque se pensa logo, mas sem razão, num tipo de amor que por si mesmo é instável, finito, efêmero, isto é, destinado a perecer como todas as coisas e todos os sentimentos humanos. Mas não é assim se o amor é “alimentado” progressivamente pela caridade. Sim, a caridade, aquela do próximo, aquela que constitui “o primeiro e o maior dos mandamentos” deve encontrar o primeiro e o principal campo de ação da família. Por amor ao próximo deve se entender o amor pelo próximo mais próximo, isto é, por aquele que está ao nosso lado.

Quando a caridade (aquela que a Bíblia chama “ágape”) vem completar o amor humano (aquele que os gregos chamam “eros”), então os frutos são maravilhosos. São Paulo os elenca numa de suas cartas (1Cor 13, 4ss): “A caridade é paciente, a caridade é bondosa. Não tem inveja. A caridade não é orgulhosa, não se irrita”. Recorda isso, em forma de conselho, na carta aos Colossenses 3, 12-21: “Revesti-vos de sincera misericórdia, de bondade, humildade, doçura, paciência. Suportai-vos uns aos outros e perdoai-vos mutuamente, toda vez que tiverdes queixa contra outrem”.

Só este tipo de amor – que não é mais apenas atração física nem sentimentalismo, mas verdadeiro dom de si mesmo – é capaz de superar a crise em que hoje em dia estão vivendo tantas famílias e que divide uma geração de outra, isto é, os filhos dos pais.

Nossas famílias sejam sustentadas pelo amor e vivam no amor, pois assim existirá o perdão. Como proceder para conseguir esta atitude que sabe perdoar, que sabe dar em silêncio e sabe esquecer-se? Ela não é apenas efeito de escolha acertada ou de sorte, também se a escolha do próprio cônjuge não deixe de ser muito importante. É fruto, sobretudo, de generosidade; é a vitória contra o egoísmo, inimigo invisível, mas fatal, do amor e, portanto, da família. Mas também, e, sobretudo, fruto da graça e da ajuda de Deus. Há um hino que se canta na Igreja que diz: “Onde reina o amor, Deus aí está”. O inverso também é verdadeiro: onde está Deus, ali reina o amor. Na família onde Deus está presente pela fé dos pais, porque se ouve a Palavra de Deus, reza-se junto, observa-se sua lei, o amor não faltará, ou poderá renascer depois de cada crise. Essa é a verdadeira razão de nosso otimismo. Por isso, rezemos todos à Sagrada Família de Nazaré: “Ó Deus de bondade, que nos destes a Sagrada Família como exemplo, concedei-nos imitar em nossos lares as suas virtudes para que, unidos pelos laços do amor, possamos chegar um dia às alegrias da vossa casa. Amém!”.

Mons. José Maria Pereira

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