quarta-feira, 21 de outubro de 2015

IV – Vida Trinitária


Todo cristão é chamado à vivência trinitária; a entrar nesse mistério salvífico que é a própria vida divina de Deus. Para isso, é preciso que se tenha consciência sobre a vocação cristã e que se possa manifestar na vida a obra de salvação que o Deus trino realiza na história, pois, na vida de cada cristão se realiza, plenamente, a obra salvífica de Deus; e naqueles que estão ao seu redor, também se realiza a mesma obra de salvação, mas de forma participativa, uma vez que, é preciso que um único cristão viva plenamente a sua fé, para que o mundo todo seja agraciado com o transbordar do amor em seu coração. As grandes obras salvíficas de Deus são o amor, o perdão, a misericórdia e a caridade. Se entendermos isso, viveremos essa obra trinitária em nossa vida, e a manifestaremos a todos, pois, quando o Pai nos recria, nós recriamos por participação tudo ao nosso redor, e assim acontece quando o Filho nos redime, e o Espírito Santo nos santifica.


É importante destacar que a obra trinitária não acontece na alma em etapas, mas simultaneamente as três pessoas manifestam suas particularidades e a mesma obra de salvação completa na alma. Com isso, “a causa eficiente principal e a causa exemplar da vida sobrenatural em nós é a SSª Trindade (TANQUEREY §90)”, pois é ela, pela graça divina, que possibilita a nossa identificação a ela mesma. “E, com efeito, conquanto a vida da graça seja obra comum das três divinas Pessoas, por ser uma obra ad extra (para fora de si), atribui-se contudo especialmente ao Espírito Santo, por ser uma obra de amor (TANQUEREY §90b)”. A SSª Trindade realiza a obra de santificação na alma de duas formas: “vem habitar a nossa alma, e produz nela um organismo sobrenatural, que, sobrenaturalizando esta alma, lhe permite fazer atos deiformes (TANQUEREY §90)”.

Dessa forma, se dá em cada cristão uma única história de salvação, escrita pela graça de Deus e a liberdade humana, que faz nascer no coração do homem três sentimentos principais: a adoração, o amor e a imitação.


a – Recriados pelo Pai

Nesse mistério de unidade com a Trindade, percebe-se que a habitação dela na alma se dá pelo batismo, pois é esse sacramento que insere a alma na vida divina. 

No batismo acontece uma “recriação” de um novo homem, uma nova criatura nasce. E é nesse sacramento que ocorre a realização daquilo que Jesus diz a Nicodemos: “É necessário nascer do alto (Jo 3,7)”. Logo, o Pai age em nós, nos recriando, nos renovando, e nos possibilitando a restituição da imagem e semelhança da criação, e enviando o seu Filho para ser o paradigma a ser imitado, o arquétipo ao qual precisamos ser identificados. O Pai nos “recria”, nos torna filhos no seu Filho. Quando nos tornamos cristãos, o Pai se torna intimo a nós, assim como Jesus possuía uma intimidade com o Ele. Além disso, nos é proporcionado o diálogo divino, tal qual o de Adão e Eva no paraíso, pois, diz o texto do livro do Gênesis que, Deus passeava pelo jardim, e o homem estava no jardim. Esse é o simbolismo do diálogo divino: Deus e o homem estão no mesmo lugar e caminham juntos.

Com isso, compreendemos que o mistério do Pai em nós, se dá numa obra de recriação, em nasce em nós, pela graça, um homem novo, e esse Pai do Céu, nos faz seus filhos. 


b – Salvos/Redimidos pelo Filho

O mistério salvífico de Cristo nos dá a salvação, sendo a condição para essa salvação, o dom da liberdade que Ele gera em nós. Jesus nos liberta do pecado, Ele nos faz participantes de sua própria liberdade, e é por isso que afirma que: “se, pois, o Filho vos liberta, sereis verdadeiramente livres (Jo 8,36)”. O Filho nos liberta, e ele promove dentro de nós um grande desapego interior, desapego esse que nos livra dos vícios, dos pecados, dos preconceitos, de nossas vaidades, para que sejamos cada vez mais identificados e transformados n’Ele. 

Pelo Filho nós somos resgatados das amarras do pecado. “Se, quando éramos inimigos de Deus, fomos reconciliados com ele pela morte de seu Filho, quanto mais agora, estando já reconciliados, seremos salvos por sua vida! (Rm 5,10)” Cristo vem ao nosso encontro para nos ensinar o caminho de volta ao paraíso perdido pelos primeiros pais. Cristo, em nós, revela o caminho para a vida interior; Ele nos conduz ao mais íntimo de nosso coração, onde encontramos a nós mesmos. Quando nos deparamos com a nossa verdadeira identidade, encontramos aquilo que somos e precisamos continuar sendo, cristãos, outros cristos. É por isso, que Cristo nos liberta daquilo que não somos nós, nos resgata e nos reconcilia como o Pai, afirmando a nossa filiação. 

Cristo gera em nós uma liberdade interior que tem como tripé a obediência, a pobreza e a castidade. Assim, Ele nos revela a nossa essência. Ele ainda deifica nosso ser, e por isso que Jesus vai dizer: “Se permanecerdes em minha palavra, sereis verdadeiramente meus discípulos, e conhecereis a verdade, e a verdade vos tornará livres (Jo 8,31-32)”. Pois, permanecer na palavra é permanecer nele mesmo, ele que é a palavra viva, e sua palavra é verdade, e a verdade nos torna livres, nos faz usar de nossa liberdade com mais consciência e buscando sempre o bem. 

Por isso, Cristo é o “caminho a verdade e a vida”, Ele nos conduz para dentro de nós, para nos libertar de nós mesmos, de nossas más inclinações e pecados, e pelas mãos nos leva para fora de nós mesmos, fazendo com que saiamos de nosso narcisismo (egocentrismo), para que assim, encontremos a verdade em nós e possamos encontrar a verdade de Deus. Em suma, é assim que “como a falta de um só acarretou condenação para todos os seres humanos, assim a justiça de um só trouxe para todos a justificação que dá a vida (Rm 5,18)”.


c – Santificados pelo Espírito Santo

O Espírito Santo na alma promove uma obra de santificação. Ele nos fortalece e nos ilumina com os sete Dons do Espírito, para que nos caminhos da vida possamos perseverar e cada vez mais nos mover com os atos e palavras de Cristo. A obra de santificação é a de identificar e transformar a alma naquilo que ela, por vocação natural, está inclinada, isto é alcançar a sua plenitude numa humanidade perfeita. “O Espírito Santo é luz que guia os que têm fé para acolher a plenitude do amor de Deus. É também o artífice que coloca no coração humano os carismas necessários para o desempenho da própria missão e entender o nosso coração para não desistir do caminho do bem, do amor e do anuncio do Evangelho” (SCIADINI. A Pedagogia da Direção Espiritual). 

O Espírito Santo inclina a alma ao bem e à verdade. Ele transmite à alma seus atributos, inspira e desvela a Trindade, dando a ela a possibilidade de perceber a ação de cada pessoa divina. Ele também é o responsável por fazer com que apreciemos retamente todas as coisas. 

O Espírito nessa obra de santificação é como o fogo, que dentro da alma a aquece e a refrigera. Tal qual o metal precioso é forjado no fogo, assim também a alma é forjada, mas no fogo do Espírito Santo e na imagem de Cristo. Vai dizer São João da Cruz: “Esta chama de amor é o Espírito de seu Esposo, que é o Espírito Santo. Sente-o a alma agora em si, não apenas como fogo que a mantém consumida e transformada em suave amor, mas como fogo que, além disso, arde no seu íntimo, produzindo chama, conforme disse (Chama Viva de Amor, Canção I,§3)”. O Espírito Santo, que é puro Amor, transforma a alma nesse mesmo Amor, e queimando-o dentro dela faz com que ela transmita o calor (consolo) e a luz (sabedoria) de tão grande mistério de Amor. Sendo assim, o Amor tende a transformar a alma em puro Amor e em participação da essência divina.

São Bernardo de Claraval vai mostrar, a partir do primeiro versículo do Cântico dos Cânticos, que é pelo Espírito Santo que a alma conhece e entra em intimidade com Deus Pai, em sua vocação de filha. “Beija-me com os beijos de sua boca. Pela boca do Pai se entende o Filho. Ninguém conhece o Filho se não o Pai e nem nada conhece o Pai se não o Filho e aquele a quem queira que se haja esta revelação.(...) Por isso, quando disse Pedro ao Senhor: Tu es o Cristo, o filho do Deus vivo, respondeu ele: Bem-aventurado es, Simão filho de Jonas, porque não foi a carne e o sangue que te revelou, senão meu Pai, que estais nos céus. E o apostolo, depois de haver dito o olho não viu nem ouvido o ouviu, (...), mas, a nós o revelou Deus por seu Espirito. Por isso não disse: Beija com seu beijo, a saber, com o Filho, não com qualquer outra criatura. O beijo diz relação entre o que beija e o beijado. Se, pois, se beijam mutuamente o Pai e o Filho, seu beijo, o que é senão o Espírito Santo? (Sermão Varios nº89, §1)”

Para São Bernardo de Claraval o esposo e a esposa é a relação do Amado Deus com a Alma amada, e quando esta pede: “Beija-me com os beijos de sua boca (Cant 1,1)”, ela está pedindo a efusão do Espírito em seu ser, pois, na relação trinitária entre o Pai e o Filho procede deles o Espírito, em que o beijo é o símbolo dessa união esponsal. Na união da alma com o Amado Deus, o Pai beija o Filho na alma, pois a ela é configurada a imagem de Cristo pelo batismo, e esse beijo é o Espírito Santo que aquece e conforta o interior da alma, inspirando e inclinando-a ao Amado Deus. O beijo é o símbolo da intimidade da alma com Deus, por isso que São Bernardo relaciona o beijo com o Espírito Santo, pois é Ele que gera essa intimidade Divina, inclinando todas as faculdades da alma (memória, vontade e razão) a amar o Amado Deus.

Diácono Rafael Augusto

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