quarta-feira, 14 de outubro de 2015

III – Espiritualidade Cristã


A Espiritualidade cristã tem como sua meta fundamental uma identificação com Cristo, pois é isso que o batismo nos faz, nos gera outros Cristos, em Estatura (maturidade humana), Sabedoria (maturidade intelectual) e Graça (maturidade espiritual). A espiritualidade cristã gravita em torno da concepção paulina do Corpo de Cristo, em que cada membro em sua particularidade é esse corpo, onde a igreja, também reunida, se torna o mesmo corpo.


Com isso, compreendem-se três âmbitos, que funcionam como um tripé da espiritualidade cristã. A abordagem cristo-antropológica nos possibilita a compreensão de Cristo como o protótipo da nova criação, aquele que é modelo de homem perfeito e que revela ao homem a sua própria identidade. Há também a abordagem escatológica, que proporciona a compreensão da origem e do fim último do homem e que se dá em Cristo Jesus. E por fim, a abordagem eclesiológica, que nos proporciona a compreensão da Igreja como corpo de Cristo, para realizar aquilo que Cristo rogou ao Pai: “que ele seja um, assim como nós somos um”.

a – Cristo-antropológico 

“De fato, Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho único, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna (Jo 3, 16).”
Deus em sua infinita bondade envia seu filho amado à terra, para nos ensinar o caminho de volta para o céu. Ele vem fazer uma obra de recriação, redenção e santificação do novo homem. Nós, que cremos que Jesus é verdadeiro Deus e verdadeiro homem, compreendemos que Ele é a imagem perfeita de Deus trindade. Sendo o homem criado a imagem e semelhança de Deus, vê-se como meta que cada homem chegue à imagem perfeita de Cristo, pois Ele é o homem perfeito que revela a nós a sua própria meta de vida.

Todo homem visa relacionar-se numa busca de completude, pois é diante do outro que ele se reconhece; e é vendo as limitações e as virtudes dos outros homens, que ele percebe suas próprias limitações e virtudes. É neste momento, também, que o homem reconhece a sua identidade, percebendo-se diferentes dos outros, mas reconhecendo-se com a mesma dignidade, que é princípio de relação, uma vez que todo homem busca relacionar-se com aqueles que ele elege ser da mesma “altura”, isto é, mesmos pensamentos, ideais, conhecimentos intelectuais.

Cristo encarna-se, e diz o texto de filipenses: “Ele, existindo em forma divina, não se apegou ao ser igual a Deus, mas despojou-se, assumindo a forma de escravo e tornando-se semelhante ao ser humano (Fl 2,6-7)”. Essa passagem expressa, plenamente, aquilo que precisamos entender: Cristo se rebaixa ao extremo, assumindo a condição de escravo, para que dessa forma possa estar à altura dos escravos; mas, ainda sendo rei para estar à altura dos reis da terra. É por isso que podemos afirmar que Cristo veio para todos, pois Ele é capaz de se relacionar com todos os homens. A exemplo de Cristo, precisamos abraçar essa humildade para nos relacionar com todos os homens.

Vale ressaltar que é vocação do homem buscar a perfeição e o próprio Cristo nós dá uma ordem: “Sede, portanto, perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito (Mt 5,48)”. “Jesus, mestre e modelo divino de toda a perfeição, pregou a santidade de vida, de que Ele é autor e consumador, a todos e a cada um dos seus discípulos, de qualquer condição (...). A todos enviou o Espírito Santo, que move interiormente a amarem a Deus com todo o coração, com toda alma, com todo o espírito e com todas as forças (Mc 12,30) e a amarem-se uns aos outros como Cristo os amou. (LG 40)”. Se Deus Pai é Santo e somos seus filhos, é coerente dizer que também somos chamados a ser Santos, uma vez que o filho é reflexo do Pai, assim como Cristo foi do Pai, precisamos ser imagem de Deus. E para chegar a essa imagem e semelhança é necessário nos identificar em atos, palavras e pensamentos, com aquele que é imagem perfeita da Suma Perfeição.

Portanto, quando reconhecemos quem Jesus é, podemos também reconhecer quem somos, e buscar o que ainda não somos, plenamente, pois o pecado que nos aflige também nos que sejamos o que realmente somos e queremos ser: filhos de Deus e, pelo batismo, outros Cristos.


b – Escatológico

“Inquieto está nosso coração e ele não encontra repouso enquanto não descansa em ti.”(Santo Agostinho).
Essa frase de Santo Agostinho de Hipona expressa perfeitamente o que queremos dizer nesse ponto, pois, realmente inquietos nós somos, e buscamos sem cessar a felicidade, algo que dê sentido à vida. Em nosso coração ecoam sempre aquelas perguntas existenciais: de onde eu vim? Para onde vou? Para que eu sirvo? Qual é o sentido de tudo? Perguntas estas que precisamos responder para encontrar o porto seguro onde repousaremos nosso coração.

Para isso, primeiramente tem-se que reconhecer, que todo homem procura aquilo que lhe realizará. Mas por que o homem busca algo que não conhece? A partir dessa pergunta, podemos chegar à reflexão de que se o homem busca algo, é porque um dia ele já experimentou desse algo, e é por isso que o mesmo Santo Agostinho vai dizer: “Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova, tarde te amei! Eis que estavas dentro e eu, fora. E aí te procurava e lançava-me nada belo ante a beleza que tu criaste. Estavas comigo e eu não contigo (Confissões)”. As palavras de Santo Agostinho mostram que muitas vezes se procura fora aquilo que já está dentro, e se já está dentro é por que já foi infundido em algum momento.

Na criação, Deus ao criar o homem já o fez participante dessa felicidade eterna. Quando o homem, pelo pecado, se afasta de Deus, ele perde a visão desse bem eterno, e como que em uma cegueira, o homem se priva da contemplação do divino. Assim, nele só restou o desejo de se unir ao divino, novamente, e esse desejo de unir-se ao eterno é traduzido no grande anseio de felicidade e realização que há no interior de cada homem. E só quem pode saciar esse anseio é propriamente o seu criador, pois, o homem só se torna pleno quando ele volta para o lugar de onde veio.

Essa busca pelo fim último do homem na espiritualidade cristã é expressa por essa vertente da Teologia, e assim a escatologia aponta uma direção última, a qual todos precisam ir. Vale lembrar que a escatologia está muito unida à virtude teologal da esperança, pois quando a escatologia nos aponta um fim último, ao qual todo homem tende a caminhar, naturalmente nos vem uma esperança de alcançar tal bem, que virá plenamente no futuro. “A esperança, com efeito, é para nós como uma âncora, segura e firme. Ela penetra até além do santuário, no qual Jesus entrou por nós, como precursor, feito sumo sacerdote eterno segundo a ordem de Melquisedec (Hb 6, 19)”. Essa passagem de Hebreus, expressa perfeitamente a vocação escatológica cristã, pois, verdadeiramente a esperança é uma ancora que nos mantêm seguros em nossa fé, e essa âncora foi lançada além do véu, e ela está segura na rocha firme que é Cristo, que está à direita de Deus Pai no Santo dos Santos. Não é possível vermos essa âncora, mas o que chega até nós são as correntes da fé, que nos mantêm seguros. Por isso, esperamos aquilo que ainda não chegou, mas que pela cada vez chegamos mais perto, por meio da esperança. 

A partir de então, as grandes perguntas existenciais se tornam um tanto quanto esclarecidas, pois se viemos de Deus tendemos a voltar para Ele, e se há uma coisa para a qual servimos, essa coisa é puramente fazer aquilo para o qual nós fomos criados, isto é, alcançar a plenitude com a santidade. Dessa forma, pode-se dizer que o homem encontra a sua realização sendo aquilo ao qual ele é chamado, ou seja, participar da santidade de Deus; e é para isso que ele caminha, uma vez que ele foi criado perfeito, ele tende a recobrar essa perfeição. Mas, essa perfeição é construída passo a passo, indo ao encontro daquele que é origem de todas as coisas. Esse é o fim último do homem: unir-se aquele que o coração anseia. Metaforicamente pode-se afirmar que a alma amada é uma peça de um grande quebra-cabeça e que cada peça tem o seu próprio lugar. Além disso, ela só encontra repouso quando é reencaixada em seu próprio e verdadeiro lugar. 

Como expressa perfeitamente a Carta a Diogneto (escrito do II século que expressa o modo de viver dos cristãos): “Moram na própria pátria, mas como peregrinos. Enquanto cidadãos, de tudo participam, porém tudo suportam como estrangeiros. Toda terra estranha é pátria para eles e toda pátria, terra estranha (Cap. V, §5)”. “Para simplificar, o que é a alma no corpo são no mundo os cristãos. Encontra-se a alma em todos os membros do corpo, e os cristãos dispersam-se por todas as cidades do mundo. A alma, é verdade, habita no corpo, mas dele não provém. Os cristãos residem no mundo, mas não são do mundo. Invisível, a alma é cercada pelo corpo visível. Igualmente os cristãos, embora se saiba que estão no mundo, o seu culto a Deus permanece invisível (Cap. VI, §2-4)”

Portanto, entende-se que o cristão é um peregrino, que nesta terra caminha, construindo a sua santidade, auxiliado pela graça, com o intuito de alcançar a pátria eterna.

“Continuemos a afirmar a nossa esperança, sem esmorecer, pois aquele que fez a promessa é fiel (Hb 10,23)”


c – Eclesiológico

A dimensão eclesiológica dentro da espiritualidade cristã é também de extrema importância, pois, assim como a cristológica está relacionada com a virtude teologal da fé. A escatológica, por sua vez, relaciona-se com a virtude teologal da esperança e a dimensão eclesiológica está intimamente ligada à virtude teologal da caridade. Posto isso, algo precisa ficar bem expresso: Jesus Cristo não fundou o cristianismo, mas sim, a Igreja, como se vê no capítulo dezesseis do evangelho de Mateus: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja (Mt 16,18)”. A Igreja é o corpo de Cristo, que no mundo promove a caridade. Sendo assim, onde há cristãos, ali está a Igreja de Cristo. A Igreja promove a caridade não pela força de seus membros, mas pela força do Espírito Santo que anima esse mesmo corpo. Com isso, vê-se que é pela união dos membros, pela caridade entre eles, que conseguem, animados pelo Espírito Santo, promoverem e expressarem a vida de Cristo, isto é, uma vida de misericórdia, perdão, compaixão, caridade e amor.

Somente é possível viver a vocação cristã em sua plenitude dentro do ambiente eclesial, pois o homem foi feito para se relacionar. O ser humano é puramente um ser relacional, como já dizia Aristóteles em sua obra Política: “O homem é um animal cívico, mais social do que as abelhas e os outros animais que vivem juntos. A natureza, que nada faz em vão, concedeu apenas a ele o dom da palavra, que não devemos confundir com os sons da voz (Cap.I)”. Como todo homem é um ser relacional, ele necessita estar sempre aberto a conhecer e a dar-se pelos outros, pois o homem reconhece a sua identidade, a sua essência, quando ele está diante do outro. É nesse encontro com o diferente que cada homem se descobre, manifesta a sua individualidade e é capaz de agir com caridade, suprindo e completando aquilo que falta no outro.

A relação dos membros no corpo de Cristo é reflexo da relação das pessoas da Trindade. Elas, em suas particularidades e sem se confundirem em suas pessoas, forma um único Deus. Assim, também cada membro forma um único Corpo de Cristo. E é a união desses membros que tornam o corpo presente, e não basta estarem os membro reunidos, mas precisa sim que estejam unidos, como o próprio mestre diz: “Que todos sejam um, como tu, Pai, está em mim, e eu em ti. Que eles estejam em nós, a fim de que o mundo creia que tu me envias-te (Jo 17, 21)”. Quando a igreja vive unida, ela consequentemente reflete a face de Cristo. E como o próprio Cristo diz em outra parte: “Eu vos dou um novo mandamento: amai-vos uns aos outros. Como eu vos amei, assim também vós deveis amar-vos uns aos outros. Nisto conhecerão todos que sois os meus discípulos: se vos amardes uns aos outros (Jo 13, 34-35)”. Eis aí a grande regra da vivência eclesial: o amor ao próximo deve ser a grande motivação, pois ele expressa o amor a Deus. E é por esse amor fraterno que somos reconhecidos como discípulos de Cristo.

Portanto, a vida eclesial na espiritualidade cristã é condição de possibilidade para a prática do amor fraterno, e é nessa relação entre membros, que é formado o Corpo de Cristo. Sendo assim, a espiritualidade eclesial manifesta perfeitamente o que São Paulo expressa em seus textos, no qual relaciona a Igreja ao Corpo de Cristo. Logo, todo cristão faz parte desse corpo de Cristo, e precisa tomar consciência disso, pois, quanto mais identificado a Cristo, pela configuração batismal, mais ainda estará unido ao corpo d’Ele, que é a Igreja, e como membro, será cada vez mais o próprio corpo. 

Diácono Rafael Augusto

2 comentários:

  1. Belo texto! Se nós servos nos empenhássemos mais e nos aprofundássemos na intimidade com o Senhor compreenderíamos a grande beleza da nossa Igreja; e jamais criaríamos muros em nossos corações! E não teríamos dúvidas de quem é realmente Jesus!!!

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  2. Que Deus nos conceda as graças nessessarias para sermos Santos através do conhecimento e crescimento...

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